Precisava devolver o isqueiro de Joana, por isso estava no ateliê dela. Com uma garrafa térmica com café de alguns minutos e vendo ela trabalhar no novo quadro dela. Lua. Ela dizia o quanto esse quadro era diferente para ela. Experimentando algo novo. Assistindo ela pintar, olhando as cores, o movimento das mãos… você pode sentir do que ela tá falando. A repetição é sempre um luxo do qual invejei. Pintores ou escultores podem passar toda uma vida sobre uma mesma imagem, repetindo repetindo repetindo e mostrando o óbvio: não existem dois movimentos iguais.
Nesse dia tive minha primeira aula de pintura. Tudo por conta de um isqueiro acidentalmente roubado, que também esqueci de devolver. Vi Joana pintar enquanto conversavamos sobre pintura, mad men, angústia, paixões e etc, depois pintei a primeira vez usando óleo. Nunca antes tinha trabalhado com um campo tão sensível, tão excitável. Todo movimento é potencialmente catastrófico, uma nova cor, uma outra textura, os problemas podem ser muitos. A umidade ajuda, deve poder deixar um naco de tinta num espaço da tela por quase uma hora lá, e quando voltar ali o corpo ainda estará úmido, ainda excitável, maleável. Há também a liberdade de pensar em cores apenas. Cores e manchas.
Hoje, quando mostrei a pintura para um astrólogo, disse que a pintura fazia sentido com minha lua em leão. Era importante me manter naquelas cores. Minhas perguntas ficaram em torno disso, da pintura, das manchas, das repetições. Ele falava comigo e eu fingia que ele falava com um pintor, não um poeta ou acadêmico, crítico ou qualquer dessas etiquetas que me cabem. Gostaria de me comportar como pintor, olhar como pintor e escrever também como pintor.
Excerto de Autorretrato: 02:52, 16/07/23 Queria lembrar do texto azulado, ilhado num mar de folhas azuis. Um livro, talvez um catálogo de uma exposição que focava no azul. A maior parte do livro era azul. * Na primeira aula de pintura evitei os azuis. Lembrava da professora contando que evitava usar preto na pintura que preferia fazer seu preto — Somar o azul ao azul até que escureça. — Não pensei, ali, no que um mal psicanalista poderiam dizer deste desvio do azul. Fugir dos blues. Eu diria que sim, interessante e que também a cor azul era a preferida de meu pai. Se pintasse quadros e quisesse falar de uma cor, se pintasse quadeos e quisesse falar do azul. Seria sempre o azul a estar ausente. Repetidas vezes ausente. Até que pudesse ouvir—ver— o azul.