Foi a primeira vez que passei o ano novo na areia da praia de minha cidade já adulto.
Minha infância foi, como de quase todo carioca, pontuada pela praia. Pelas praias. Todo final de semana com sol sabia que o dia começaria sempre com já certa ânsia. Era como se acordasse sabendo que algo ia começar a qualquer momento. Quando era pequeno eu pensei que esse sentimentos estava relacionado só aos começos. Achei que era uma certa vontade de começar o dia. As férias de verão eram como um final de semana prolongado. Mas a ânsia das manhãs pela praia não era menor, todos os dias o sentimento se repetia. Quando acordávamos e o tempo não estava aberto, quando havia muito vento mas ainda sim sol era inconveniente mas íamos sabendo mesmo assim que não gostaríamos tanto. Que barracas provavelmente voariam por estar mal colocadas. Provavelmente um turista, ou não local de qualquer tipo. Ou alguém que era somente turista na praia de sua própria cidade, coisa que eu me tornei. Alguém que não entende que o solo da praia tem suas regras que são muito diferentes das regras do pavimento. O suporte está lá mas é escorregadio, é movente. O solo move-se com você, te segue. As pegadas que ficam na praia não são suas pegadas. São as pegadas da própria praia em sua Odisseia entre corpos, entre seco e molhado. Entre a areia e o oceano. A praia, talvez, seja o mais antigo dos anfíbios.
Ela nos coloca de outra forma. O corpo precisa se ajustar. Usa-se pouco, nos protegemos com alguma sombra, óleos e cremes. A praia é este lugar de regresso ao corpo. Se alienígenas nos visitam como nos filmes de ficção científica, a praia é o Safári. Ali eles podem nos sendo os animais que seríamos se seguíssemos a luz do sol e não a luz da lógica. A luz da carne e não da razão. Porque na praia, com o calor na cabeça, o sal no corpo ajudando na torra do corpo quase nu ficamos em carne viva, na flor da pele. Podemos apenas responder com os sentidos que ficam completamente dormentes quando nos vestimos por completo, quando somos confortavelmente enrolados como fazíamos com os bebês recém nascidos há cerca de 50 ou mais anos. Nos resta apenas observar e pensar. Não nos é permitido olhar, apenas ver. Pois olhar é um movimento do corpo inteiro. Para se olhar algo o corpo tem de estar presente. O olho precisa também do tato, precisa de algo para dar a dimensão das coisas. Se nosso corpo está restrito sob costuras e panos que se agarram a nossa superfície como podemos notar qualquer outra coisa que não onde a calça abraça sua cintura, ou onde sua blusa ou vestido cai sobre suas clavículas, como tecidos mais leves tocam suas pernas quando você se move etc. Na praia o corpo está livre para olhar. E no verão nós ansiamos por isso, por esta liberdade.
Janeiro é nosso meio de verão. Alto verão. O mês inteiro está sob este signo. Mas o mais importante é que quando Janeiro entra, quando o ano novo entra começamos a nos dar conta que o verão em breve acaba. Que há pontuação. Podemos ver a linha do horizonte como a linha das calças que usamos, das camisas, das saias que nos cabem perfeitamente que nos vestem como uma luva. Então o sentimento de ânsia pela praia, o estar na praia é certamente, também, uma alegria do fim. Da pontuação das coisas, mesmo como uma viagem. Porque também não poderíamos viver sempre em estado de praia, a nossa religião não permitiria. A evangelização do capitalismo nos corpos da praia seria brutal como foi a primeira evangelização no que agora chamamos Brasil.
Por pelo menos entre duas e quatro semanas conseguimos essa brecha. A praia. Escapamos a iluminação e a brutalidade da razão. A opressão da lógica e da materialidade. Podemos nos dar completamente à sensibilidade de Ser. Me dou conta disso por conta deste ano novo. Que passei nas areias de Copacabana com amigos e enquanto os fogos estouravam e rolhas eram lançadas aos ares uma amiga me disse que aquilo era nosso Midsommar. Nosso ritual pagão do meio de verão. Estamos entrando a segunda semana do verão quando o ano novo é comemorado. O sol já se estabeleceu no sol. Ou deveria ter. Alguns antes do solstício (geralmente entre 22 ou 21 de Dezembro) começamos as preparações pro ritual da chegada do verão. Nosso ritual pagão que perdura. Há ainda tantos mais paralelos que podemos traçar. A praia como a praça das bacantes. Onde Dioníso está em festa. É um lugar onde o selvagem e o civilizado se encontram, o seu limite como todos limites são um borrão, é onde as coisas ficam difusas. E durante o verão, durante Janeiro, passamos horas sob o sol, na praia tentando aprender com esse limite que nunca se fixa num ou outro quem nós mesmo somos. A praia nos coloca também nesse espaço de reflexão do corpo. Uma meditação, colocar os pés onde as ondas quase não chegam, só as mais fortes e ficar ali até o pé afundar e firmar-se como uma raiz. Como se você fosse um árvore do mangue. Podemos nos segurar ali por horas se aguentarmos os primeiros momentos de instabilidade. Em certo ponto os pés estão fincados. Os tornozelos se tornam parte da areia, não são engolidos, nem enterrados. São simplesmente anexados.
Agora tenho vontade de voltar a praia. De deixar meu corpo respirar e meditar. Perder o medo do corpo. Porque é com o corpo que deveríamos ansiar. Quando deixamos toda ânsia para a razão aquilo se torna ansiedade. Se torna abstrato demais. A lógica não pode dar conta do que um corpo sente. A lógica não consegue sentir a atmosfera, o pensar não é um dos sentidos. Para sentir precisamos do olfato, do tato, da escuta, do olhar e da degustação. Os cinco sentidos são sempre do corpo, então por que deixamos eles tão guardados pela razão? Por este pensar que exclui o sentir e também nos exclui. E se queremos conseguir nos entender é bom começar a sentir o que o corpo tem a dizer e ele diz melhor sob o sol de verão e o verão acaba. E acaba todo ano. É bom aproveitar este fim que se repete ano que vem.