Este breve texto é uma espécie de ode à palavra escrita o que pode soar e ser bastante entediante para grande parte. Tento aqui responder de algum modo também às falas que foram feitas aqui nesse últimos dias e ao tema do semináro. Letras Expandidas XVII: Poéticas da Fratura: Especulando Costuras. Principalmente, devo essa fala à Pê Sobrinho Moreira que ontem falou sobre a rasura. Agradeço imenso também aos amigos de comissão [Beatriz Pôssa, Brunno Abrahão, Clara Lopesa Pereira, Gabriel Martins, Mariana Perelló, Nathália Rinaldi, Sofia Osthoff e Wallace Ramos pela confiança de preencher esta lacuna1.
Não me lembro mais quando encotrei a palavra litura, tenho a impressão que foi num livro de Susan Howe sobre arquivo. Mas a palavra imediatamente saltou quando a li.
Litura é um substantivo feminino, significa parte ilegível de um escrito (por efeito de rasura) ou o que está apagado numa escritura; o que se riscou ou raspou num escrito e que por isso ficou ilegível. A ideia de se ter um nome para o ilegível me soou esperançoso. Essa atenção ao que foi apagado. Aos vestígios.
Apesar de gostar bastante dos significados dos dicionários, eles não me pareceram suficiente. Como se houvesse mais a ser desvelado daquela palavra, geralmente há, podemos chamar isso de etimologia.
No dicionário de latino-português litura é traduzido por rasura; correção, emenda, borrão, mancha. A tradução me pareceu tanto mais simples quanto mais completa. Avançando algumas páginas encontro rasura no dicionário. Traduzem: ação de raspar, rasura; raspadura.
No dicionário de português, sob rasura, estão as seguintes descrições da palavra:
1. Ação ou resultado de riscar ou raspar palavras em texto impresso ou manuscrito.; 2. Esse risco ou essa raspagem; 3. Palavra ou conjunto de palavras corrigidas ou riscadas em um texto; 4. Conjunto de raspas; 5 O resultado da fragmentação de uma substância medicinal por meio de lima, ralador ou outro similar
A diferença principal, me parece, é que a rasura é uma ação [e seu resultado]. Verbo. Enquanto Litura é sempre substantivo.
Anne Carson diz, em Autobiografia do Vermelho, os substantivos nomeiam o mundo. Verbos ativam os nomes. Se formos na direção de Carson, litura e rasura precisam um do outro para existir. E enquanto não são a mesma coisa, não tem o mesmo significado ou papel no mundo elas parecem ser também, como indicam os dicionários, sinônimos ou quase. Palavras primas, que dividem certo Kinship. Este aparentamento das palavras me interessa, estes sinônimos ou quase.
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O poeta é uma espécie de rasura entre o eu e o outro. O poeta é qualquer coisa de intermédio, para usar um verso de Sá-Carneiro.
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Agora fiquemos com rasura. Não há como ouvir essa palavra sem também ouvir algo raspar. A ponta da caneta ou grafite contra o papel. Ação ou resultado de riscar ou raspar palavras em texto impresso ou manuscrito. Acredito, nunca ter saído dela. Toda escrita é uma espécie de rasura, o nosso alfabeto é uma rasura. As consoantes uma espécie de litura. Carson define as consoantes como ações que começam e param som. As consoantes por si só, continua Carson, não produzem som. As consoantes são o que de uma palavra não se poderá ler. Consoantes pontuam também nossa respiração. Ao falarmos pê, bê, cê, tê... sentimos nossa boca, nossa língua raspando em si ou uma nas outras ou mesmo sentimos o vento raspar por entre a língua, o céu da boca, os dentes até que a consoante saia.
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Esse nome e sua ativação, me parecem dar modos de falar sobre a poesia que mais me interessa. Esta poesia que é feita pelo método da litura. Essa não é uma ideia nova, tampouco original. Podemos ver essa ideia em John Keats. Ele vai chamar de capacidade negativa. A capacidade negativa, explica Keats numa carta para seus irmãos, é a capacidade do Homem de ficar nas incertezas, Mistérios (com m maiusculo), dúvidas, sem uma irritable reach (esforço irritadiço?) por fato e razão. Por meio da tentativa de sua capacidade negativa, Keats escreveu seus melhores poemas. Ou assim é dito pela crítica.
Emily Dickinson nasce 9 anos depois da morte de Keats, a milhares de kilometros de distância. E vive mais que o dobro de Keats. Enquanto ele morre aos 25 anos, Dickinson morre aos 55. E acredito que Keats veria também em Dickinson essa capacidade negativa.
Olhemos o poema 1097 de Emily Dickinson, datado fim de 1865, cerca de 44 anos depois da morte de Keats. A tradução é de Adalberto Muller.
Cinzas denotam Fogo morto — Reverência à Cinza Pilha À Partida Criatura Que adejava há pouco ali — O ser do Fogo é antes luz E logo se consolida Em que Carbonatos Só o Químico deslinda —
Helen Vendler, que lançou um antologia de poemas de Dickinson, com comentários. Sobre este poema ela comenta:
Cinzas denotam Fogo morto— nos ajuda a entender como Dickinson via seus poemas: ela os via como resíduo críptico de seu incandescente fogo emocional e intelectual. Seu leitor precisa se tornar um Químico forense, que estudando os resíduos do fogo pode fazer testes para determinar quais substâncias estão presentes nas cinzas.
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A capacidade negativa e a litura, me parecem, são parentes. Se a litura é aquilo que não podemos ler, devemos especular apenas, imaginar o que está debaixo daquela rasura. Daquela ascenção de linha até que a palavra caia num abismo. Assim são os poemas de Dickinson, segundo Vendler, eles demarcam este acontecimento indizível.
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Porém antes de Dickinson e antes de Keats houve Homero. Talvez a primeira litura registrada em poema está no décimo livro da Odisséia. Uma flor chamada MOLY aparece no poema, Anne Carson diz que essa é uma das muitas ocorrência da língua dos deuses nos poemas de Homero. Carson diz que quando Homero usa a língua dos deuses ele geralmente oferece uma tradução terrena. Nesse caso isso não acontece: A palavra, vai dizer Carson, cai em silêncio. Esse é o modo, ainda parafraseando Carson, como Homero vai jogar uma porção de tinta branca no texto. Homero gera um ponto de opacidade completa. De repente não podemos ver o que ele diz. E essa cegueira mantêm pesquisadores a seguir procurando por essa flor, por lugares mencionados nos poemas etc. O poema também pode gerar um ponto de opacidade no mundo o que faz uma espécie de novo começo. Já que não podemos atravessar a opacidade da intraduzibilidade, devemos sempre no aproximar dela e retornar. Esperando que em algum desses retornos, algo novo apareça. que a opacidade também seja ponto luminoso.
Esse texto foi escrito para ser apresentado como uma Interferência no Seminário Letras Expandidas, da PUC-Rio. A razão desse texto se deu por um cancelamento de última hora e por isso, de certa forma, devo esse texto a todos que participaram de algum modo do Letras Expandidas XVII, Poéticas da Fratura: Especulando Costuras.